Naquele banco, daquele parque, aquele dia.
Era verão, mas não estava quente demais.
Batia uma brisa leve e os pinheiros se mexiam bonitos, lá no alto.
Naquela época ainda tinham árvores naquela esquina, era bonito.
Eu nunca imaginei que logo ele ia me dar atenção, virar meu amigo, mas virou.
A gente conversava bastante, não faço ideia sobre o quê.
Mensagens e mais mensagens.
Depois começamos a sair pra passear e passávamos horas conversando.
Eu amava conversar com ele, amava passar tempo com ele.
Ele ria das minhas piadas e eu sentia que não precisava fingir que fazia parte de uma subcultura pra ele me achar legal, sei lá, a gente só se achava legal.
Gostava de fazer coisas com ele, até umas coisas nada a ver, tipo andar por uma loja de materiais de construção que ficava na esquina da rua dele.
Aliás, tinha isso também, a gente morava no mesmo bairro.
Ele conhecia um monte de gente que eu conhecia também, estudou nas mesmas escolas que eu, teve os mesmos professores e aprendeu coisas parecidas, acho que ele me entendia melhor por morar ali, porque acho que a geografia faz diferença quando a gente conhece alguém.
Passaram anos tranquilos de amizade, ele às vezes me fazia perguntas estranhas e às vezes ele me frustrava muito, mas eu sempre coloquei ele num pedestal.
Porque parte da minha vida foi pra sempre alterada porque ele era meu amigo.
Isso faz muitos e muitos anos.
Éramos crianças quando nos conhecemos, faz mais de 21 anos.
Eu sempre associei a melhora da minha autoestima ao nascimento do meu irmão, porque ele sempre foi um irmão muito bom, muito especial e que me ajudou muito a entender que tinha espaço pra mim no mundo.
Mas esses dias na terapia eu tava lembrando e eu conheci esse amigo um ano antes do meu irmão nascer, ele talvez tenha até me ajudado a ter a coragem de pressionar meus pais pelo meu irmão, porque eu queria um irmão mais que tudo, eu odiava ser filha única e eu e meu pai infernizamos minha mãe pra ela ter meu irmão.
E quando meu irmão nasceu minha vida melhorou absurdamente.
E também depois que ele virou meu amigo.
Ele me tratava bem, como se eu fosse uma pessoa digna de ser tratada bem, como se xingar e humilhar seus amigos não fosse uma coisa normal.
Ele nunca me xingava, nem me humilhava. Eu lembro tão vividamente do sorriso dele.
E é engraçado porque ao longo dos anos ele teve o cabelo raspado, curto, médio, longo e em todos eles eu lembro dele me tratando como um ser humano digno de afeição e sorrindo.
Faz mais de 6 anos que eu não falo com esse amigo.
Dos 17 aos 21 também fiquei sem falar com ele, depois voltamos a nos falar.
Esses dias eu tentei entrar em contato com ele, mas ele não respondeu.
Antigamente eu teria ficado completamente arrasada, mas hoje em dia eu entendo que aquele meu amigo nem existe mais. Ele é outra pessoa agora.
Uma pessoa que eu adoraria ser amiga ainda assim, mas não é o meu mesmo amigo, é outro, aquele nem existe mais. E por acaso o de agora não quer mais ser meu amigo.
E eu entendo, eu não sou uma pessoa fácil de conviver.
Infelizmente eu não lembro direito porque a gente parou de se falar, porque quando isso aconteceu eu estava no meio de uma crise mental muito severa e estava desassociando muito.
Tinha acabado de tentar parar de existir.
Quando isso aconteceu eu achei que ia ver ele, mas ele não apareceu.
Do nosso afastamento eu só lembro que em algum momento ele disse que eu estava falando que nem uma bolsonarista e conhecendo meu amigo e eu, aquilo era uma das piores coisas que poderiam ser ditas, então ele devia estar muito bravo e cansado. O cara tinha acabado de se eleger, o que teve um peso significativo no começo da minha crise.
Eu era jovem e tola, hoje em dia jamais deixaria um fascista me destruir daquele jeito, mas na época eu não sabia melhor. Eu surtei. Enfim...
Quatro anos depois, na eleição do meu velhinho bonito, na fila da votação eu vi meu amigo de novo, mas dessa vez eu nem sei se ele me viu, acho que sim porque estávamos muito perto, mas ele não me deu oi, nada, como se fossemos completos estranhos, como se não tivéssemos nos conhecido crianças e crescido juntos e passado por várias coisas.
Talvez eu que tenha romantizado essa amizade e pra ele não teve o mesmo significado que teve pra mim. Talvez ele mal se lembre.
Sei lá.
Esses dias meu irmão tava falando sobre como eu costumava ser, nas palavras dele "maior rueira" e isso me fez pensar em todos meus amigos perdidos e todas as socializações que deixaram de existir e o quanto boa parte daqueles amigos não gostavam de fato de mim, mas sim da versão que eu tentava encenar pra eles. Na psicologia se fala em mascarar.
Na época eu não sabia que era autista, mas instintivamente sabia que meu jeito não era muito legal de se conviver, na minha família meus primos mais velhos me maltratavam muito, me chamavam de irritante, me batiam, humilhavam minha aparência, até os que eu achava que eram meus amigos, então eu sabia que ser eu mesma não era a melhor das opções.
Mas quando eu conheci esse amigo em questão era nova demais pra perceber que o jeito como me tratavam era ruim e errado, então desde o começo fui totalmente eu mesma com ele e ele gostou de mim mesmo assim.
Acho que por isso quando eu recebi meu diagnóstico tentei me reaproximar dele, fiquei com saudade de conviver com alguém que não era da minha família, não tinha obrigação nenhuma de me tratar bem e ainda assim tratava.
Mas a gente cresce, muda, se desenvolve e hoje em dia eu não sou mais aquela menina que era amiga dele e nem ele é aquele menino que era meu amigo.
Somos completos estranhos vivendo vidas completamente separadas.