segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

500 metros pela vida.

João Manuel Fonseca, 52 anos. Casado há 32, dois filhos já criados, uma mulher que ainda conservava algum charme e muito carinho, tudo pra agradá-lo, nunca brigavam, quase nunca. Só talvez quando ele ficava bebendo sua cachacinha até um pouco mais tarde e ela tinha que ir buscá-lo no bar da esquina, preocupada. Acontece que esse negócio da mulher ir buscá-lo no bar o desmoralizava perante seus companheiros de sinuca e cigarro, mas nada que uns bons tapas chegando em casa não resolvessem. Era segunda-feira. Manuel - que costumava ignorar seu primeiro nome - já começava a semana cansado, tinha dado um churrasco em casa no dia anterior e ele já não era mais tão jovem, as brincadeiras, gritarias no truco, o vai e vem pra fazer todos se sentirem satisfeitos com a carne - já que ele que cuidava da churrasqueira improvisada - o fatigaram um bocado. Morava de um lado da Anchieta e trabalhava do outro, todos os dias saia de sua casa 20 minutos antes de começar o expediente, andava 50 metros até chegar na Anchieta, mais 500 até a passarela, atravessava-a e andava mais 40 metros até chegar na firma. Acordou sem despertador 30 minutos mais cedo do que de costume, beijou a testa de sua mulher ainda adormecida - que levantaria dali 10 minutos para preparar-lhe o café - não costumava ter desses gestos e não fora automático, ele só viu aquele rosto envelhecido que outrora tinha sido bonito o bastante pra que ele quisesse com ela se casar e se sentiu tão enternecido que teve que beijá-la. Foi até o banheiro lavar o rosto, urinar e escovar os dentes, quando terminou a mulher já havia levantado, ele então abraçou-a - coisa que muito a surpreendeu e disse com carinho que fumaria um cigarro enquanto ela fazia o café. Enquanto fumava pensou em seus filhos, o mais velho já se casara, tinha uma boa mulher e em breve, com certeza, lhe daria um belo neto. O mais novo passara em uma faculdade no interior, o que custou muitas lágrimas a sua mulher, mas estava se dando bem agora, o moleque, aprendendo a se virar sozinho.. Pensar aquelas coisas suscitou nele uma saudade, uma nostalgia que ele nunca experimentara antes, um nó na garganta o surpreendeu, segurou o sentimentalismo e foi desjejuar. Elogiou as torradas e o café da mulher - coisa que não fazia nunca-, escovou de novo os dentes e antes de abrir o portão pra partir beijou sua mulher como se ainda estivesse apaixonado, então se foi com sua sacolinha na mão.. Em 50 metros chegou na Anchieta, nunca fora muito bom de física, mas pelos seus cálculos hoje não teria que ir até a passarela e isso já era uma grande coisa, aquela subida íngreme sempre o deixava exausto logo de manhã. Correu ao mesmo tempo que Maurício, um futuro pai desesperado levando sua mulher pra maternidade, acelerou com um grito de Julia, sua mulher, que acabara de ter mais uma contração. Freada brusca, choque, queda, sangue.. Manuel morreu na hora. No acidente mais dois carros se envolveram, Julia desmaiou, mas ainda assim deu tudo certo no parto, tiveram uma menina, que coincidentemente batizaram de Maria Eduarda, mesmo nome carregava a viúva de Manuel, que no ato do acidente sentiu um aperto no coração, correu pra rua e viu tudo, como que em câmera lenta.

8 comentários:

Katrina disse...

História real, e é isso que faz que muitos desejem que seja ficcional

=*

Anônimo disse...

História que dói no nosso coração... Ao ler a gente vai sentindo o que vai acontecer.
Ainda assim lê, na esperando de estar errada na suposição.

Bela escritora você. Vai fundo!

Ferdi disse...

Muito obrigada, Larissa, I'll keep trying.

Erica Vittorazzi disse...

às vezes me pergunto se realmente sabemos o dia da nossa morte para fazermos coisas assim e nos despedirmos?

ótimo texto!

Anônimo disse...

Sempre que começa assim no fim vai ter morte! Malvada, assassina, deixe o viver!

Agora é sério mesmo, isso é apenas um retrato de uma vasta realidade. Por um momento eu tava lá.

Ferdi disse...

Graças a Deus até hoje eu "só" perdi dois entes queridos e próximos na vida.
Foi bem punk na verdade, um no dia do meu aniversário e outro 15 dias depois, um de cada lado da família.
Os dois casos.. a despedida faltava dizer "eu sei que vou morrer", muito mais que Seu Manuel e seus sentimentos estranhos, parecia realmente que eles sabiam, com cartas e tudo.

Aliás, o texto de hoje seria sobre isso, mas resolvi dar um intervalo na morbidez e escreverei daqui uns dias.

Amanda Pietra disse...

... Não concegui lê tudo. o.O

Ferdi disse...

Por quê, Pietra?