sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Alzira e a vitrola.

Alzira nasceu em uma família aparentemente comum. Regina, sua mãe, era professora de uma escola pública, revolucionária quando jovem, quase fora exilada na ditadura, mas graças a uma incrível sorte e ótimos esconderijos, saiu ilesa. Essa mulher, cheia de sonhos e força, largou qualquer idealismo pelo sonho burguês, casou, teve uma filha, tinham um caro e apartamento próprios, era completamente comum. Não aceitava as coisas como eram mas não fazia - e muito menos falava - nada, era como se a Regina política tivesse morrido assim que passou a ser Regina noiva. Ainda era a mesma e vivia como seus pais, mas não queria que sua filha tivesse o mesmo fim, por isso, todo o tempo que podiam passar juntas, ela a instruía, sem querer mostrar sua insatisfação com suas escolhas, mas deixando claro que a vida era muito maior. E das maiores coisas que a vida tinha pra oferecer, a música era a maior delas. Educou musicalmente Alzira desde muito cedo, de Tchaikovsky aos mestres da Bossa Nova, Janis Joplin a Frank Sinatra, mil vertentes, muita qualidade. Músico de bar noturno, muito boêmio, conquistador.. Regina era admiradora da voz calma e dedos ligeiros daquele rapaz que parecia tão discreto a primeira vista. Conquistador.. Regina achava-o tão reservado, calado. E acima de tudo: um músico brilhante. Ele de fato o era, suas composições lembravam-a Bosco e sua intimidade com o violão era só dele. Pena que ele parecia tão distante. Não, não era. Regina é que sempre acabava indo embora cedo, até um dia que não foi. Ficou, só mais um pouquinho, "vai que a Claudia aparece daqui a pouco..", ela contava com essa possibilidade, queria dar um abraço na amiga que estava sempre por lá e fazia anos naquela data, então ficou. E por esperar a Claudia, acabou por conhecer o que tinha tomado só uma garrafa de cerveja quando foi avisado que ela estava ainda por lá. - Viu quem está aí? - Quem? - Sua bela.. - Ela ficou dessa vez? - Parece que sim.. - E a vida se mostra boa de novo. Estou bem? - Como poderia? - Ah, vai à merda! Porra, cara, já volto. - Volta? - É, espero que não. E não voltou mesmo. Roberto olhava e pensava naquela garota sorridente e misteriosa a cada música que tocava, que compunha, que cantava, alimentava a platônica paixão desde a primeira vez que reparou naqueles olhos amarelos, que nunca ficavam tempo suficiente. Por isso esse momento era grande pra ele, que estava tímido e simpático quando a abordou. Ela, que tinha esquecido o rapaz das ótimas músicas na sua espera e se sentiu como que se tivesse contado um degrau a mais quando ele veio sorrindo em sua direção. - SEU FILHO DA PUTA VOCÊ SABE QUE HORAS SÃO? - Cala a boca, me deixa dormir.. - VOCÊ É UM VAGABUNDO MESMO, SEU CRETINO, SEU NOJENTO! - Vai se foder, Regina, me deixa em paz. - ME FODER? VOCÊ QUE ESTÁ SEMPRE POR AÍ FODENDO, AQUELE BANDO DE VADIAS QUE VOCÊ... - QUE BANDO DE VADIAS? - AS QUE VOCÊ ESTAVA COMENDO ATÉ ESSA HORA! - NÃO ESTAVA COMENDO NINGUÉM. Alzira escutava do quarto, aflita, tinha cinco anos na ocasião e se escondia debaixo da cama. Enquanto a gritaria continuava ela roía a pouca unha que lhe restava, até começar a ouvir os choros e tapas, então não se aguentava e ia até a sala, chorava e se ajoelhava no chão, sabia o que viria a seguir, sabia que apanharia também, mas, se dividisse a surra a mãe no outro dia ao menos conseguiria andar, mas de qualquer forma sempre se sentia culpada por não interceder antes, se reprimia e castigava por ter sido tola o suficiente pra ter esperanças da pancadaria nunca começar. Ela já tinha cinco anos, como poderia ser assim ingênua ainda? -VOCÊ SABE QUE HORAS SÃO, PORRA? - EU ESTAVA TRABALHANDO E JÁ TE FALEI QUE NÃO É PRA ME ESPERAR. - TRABALHANDO O CARALHO, VOCÊ PENSA QUE EU SOU IDIOTA? Alzira, agora com 15 mal formados anos, não intercedia mais, estava cansada de se sacrificar por uma pessoa que parecia gostar da vida de surras e traições que levava. Por mais que amasse a mãe, tinha desistido, já conversara demais, já pedira demais, não estava mais ao seu alcance. A mãe se defendia dizendo que no fundo eles se amavam e que ela que devia parar de ser tão agressiva todos os dias. Esse discurso, quando proferido da primeira vez a enojou ao ponto de ter mesmo que vomitar, agora nem ele a fazia menos indiferente. Indiferente, mas sempre a roer unhas. - SUA CADELA IMUNDA VOCÊ ME XINGA TANTO MAS APOSTO QUE QUEM FICA DANDO POR AÍ QUANDO EU ESTOU TRA-BA-LHAN-DO É VOCÊ! - Agora você passou dos limites, sai daqui, VAI EMBORA, SAI DESSA CASA AGORA! Abriu a porta: - Se você encostar a mão nela eu chamo a polícia. Disse com tranqüilidade, com seus olhos - também amarelos - sempre fatigados, uma tranqüilidade absolutamente decidida: - Vamos, faz de novo, encosta nela! - VOCÊ PENSA QUE VOCÊ É QUEM PRA FALAR ASSIM COMIGO SUA CADELINHA MIRIM? - Bate em mim, vamos! Ele, que havia avançado, recuou: - Está com medo? É bom que esteja! Porque no que depender de vim VOCÊ VAI SE FODER MUITO SEU CRETINO e faz logo o que ela está falando, pega sua mala e vai embora, senão eu mesma taco todas essas porras pela janela. - VOCÊ.. VOCÊ.. VOCÊ NÃO TEM O DIREITO DE FALAR ASSIM COM O SEU PAI! - Pai o caralho, você sempre foi só a porra de um bêbado que encheu o saco de todo mundo, por mim você estava morto faz tempo. Duas lágrimas escorregam pelo rosto de Roberto, tão sensível como artista, tão cretino como pessoa. Regina soluçava no sofá com a cabeça entre as mãos. Ele não encontrou nenhuma palavra pra contestar a realidade e a dimensão que as coisas tinham tomado, só conseguiu abaixar a cabeça e dizer: - Eu não vou ter dinheiro pra pensão. - Ninguém vai precisar de esmola sua por aqui, pode ir agora. E deixa a chave com o porteiro. Ele não conseguiu responder nada, foi até o quarto fazer as malas. Enquanto isso Alzira se trancou no quarto com a mãe e colocou na antiga vitrola a valsa Kiss Waltz de Strauss, que era a preferida das duas, porque remetia a contos de fadas e o que se espera tocar quando se acaba o livro da vida, comentou: - Eu li esses dias que nosso corpo é composto por 70% de água e há pesquisas que dizem que dependendo do que ouvimos a água do nosso corpo pode ser saudável ou não, bonita ou feia, na Europa, essa música é receitada por médicos pra quem está com esgotamento nervoso, então calma, respira, escuta bem, que vai passar. E nossas águas vão parecer diamantes. Escutaram abraçadas, alto o suficiente pra não ouvir a porta se fechando e levando embora pra sempre o motivo das duas terem, por tanto tempo, águas parecidas com tumores.

5 comentários:

Anônimo disse...

Que texto do caralho, hein?
Quando estiver a fim de algo mais bobo, absolutamente idiota e politicamente incorreto, convidamos a visitar o nosso.

http://cagadadeurubu.blogspot.com

Ferdi disse...

Estou sempre afim.
E gostei do de vocês.

Anônimo disse...

A gente adora seus comentários também.
Será que o Tatuadinho aparece amanhã???

Ferdi disse...

TOMARA! Juro que estou torcendo pra isso, bastante.
Mantenha os entusiastas informados, por favor.

Fabi Penco disse...

PQP! que texto fora do comum... eu ri sozinha aqui. Na moral mesmo :D