quarta-feira, 19 de maio de 2010

Tenho pensado em não pensar.

Há alguns anos li algo sobre velocidade.
Alguém disse que se você está muito rápido os pensamentos fogem de você.
Corra o máximo que conseguir e se seus pulmões não explodirem você notará que só não pensa.
Aliás, não notará.
Partindo dessa premissa joguei fogo na cama dela e tentei começar a correr quando a vi vindo em minha direção, de meias, calcinha e uma blusa que mal cobria seu umbigo, cheia de sono, sem entender vinha dizendo "Tem fumaça no meu quarto, fumaça na cama".
Corro de volta pro quarto e vejo que não há mais jeito de apagar, a pego no colo e corro com toda a força que me resta, gritando pelo prédio.
Partindo daquela premissa, não estava a uma velocidade muito grande e meus pensamentos me inundavam, mesmo com toda a adrenalina que um incêndio criminoso causado por mim, se espalhando pelo prédio, podia me causar.
"O que aconteceu?" me perguntou com a perna ligeiramente chamuscada quando começou a raciocinar, já na rua.
"Devo ter dormido e deixado algum cigarro cair, não sei", menti sem convicção e tentando me fingir de confuso, ela era esperta.
"Porra, se você fez alguma merda me fala logo! Se eu não descobrir a perícia vai, você sabe como eles são filhos da puta com essas coisas, num bom sentido, hoje em dia, então fala logo", me olhava num ódio assustado, sabia que eu tinha culpa.
Muita gente descia, não todo mundo, eu bem sabia quando disse pra ela me esperar que traria cigarros que a ajudariam a manter a calma.
Ela não tentou me impedir, só virou o rosto e começou a morder manga da blusa aflita, deixou uma lágrima rolar. Gostava dos nossos vizinhos, principalmente do casal de gêmeos ruivos que moravam no nosso andar, um menininho e uma menininha de 5 anos, eram mesmo doces e adoráveis até pra mim que odiava crianças. Acho que pensava que as chamas que os lambiam eram tão vivas e vermelhas quanto os cabelos deles, antes daquilo. Podia estar pensando também que a culpa era dela de alguma forma, adorava se culpar mesmo, deve até ter se suicidado, depois de tudo, não sei.
Não sei mesmo, nunca mais tive notícias dela, nem dos gêmeos, nem de ninguém, depois de fingir sem me dar ao trabalho de fazer um bom trabalho fingindo que não estava fugindo, corri o máximo que pude.
Então aquela falta de sensação me invadiu, só voltei a pensar quando meu pulmões e joelhos de alguém que não tem mais dezoito anos começaram a gritar de dor.
Olhei ao redor, tinha uma estação do metrô por perto, fechada já, mas que me deu a idéia de procurar a rodoviária pra me mandar de São Paulo, era essa a idéia que eu tinha de fuga e foi isso que fiz.
Estou morando aqui no Chile há cinco anos, demorei até achar um lugar que quisesse e conseguisse ficar.
É que apaguei meu nome, me fingi de afogado, pensei muito num plano pra conseguir ficar.
Agora faço de tudo pra não pensar, não lembrar dos gritos, dos cabelos lisos, castanhos, longos e ligeiramente descabelados caindo sobre aquela blusinha que usava como pijama, os olhos grandes e bem contornados de menina ainda nova, a boca carnuda sendo mordida nervosamente pelos dentes perfeitos graças a ortodontia, a lágrima que eu vi rolar quando ela se virou pra olhar o prédio e toda gente que saia assustada e com cara de sono, junto com a fumaça.
Tentei não pensar nos gêmeos graciosos, nem na senhora que morava no andar de cima e que, além de silenciosa, nos trazia bolos de frutas com freqüência, tentei não pensar e lembrar que nossos preferidos eram os de abacaxi e laranja, de preferência com ela sentada no meu colo e me dando na boca.
Corro toda manhã pra não lembrar da nossa última explosão conjunta antes da briga, do último beijo em que ela se deu ao trabalho que fingir que ainda me amava, dos gritos escandalosos e da minha súbita insanidade e desejo de vingança.
O Chile tem sido um bom lugar pra mim, me acolheu bem, sem muitas perguntas.
Eu não faço muita coisa e sobrevivo, mas ultimamente ele tem me entediado, sabe?
Realmente não faço muita coisa e estava pensando em uma mudança de ares, pensei em tudo já, ninguém sabe meu nome, estou tranqüilo.
Nunca contei essa história antes e agora vou dar continuidade aos meus planos de mudança, mas dessa vez não fracassarei no assassinato. Alguém terá que morrer pra que eu possa correr com mais certezas, mesmo não tendo necessidade delas enquanto corro.
E eu pensava que esse alguém...

6 comentários:

Andarilho disse...

Eu colocava o Dexter atrás desse infeliz. ;)

maria elis disse...

acho que antes do próximo crime, a polícia encontrá ele.

beijas :*

Agatha disse...

Pensar = torturar

Sábio aquele que disse que felizes são os ignorantes.

Paula Laurentino disse...

Ué, achei que você tinha dito no vídeo dos cinco vlogueiros que não tinha talento pra escrever. Hahaha Gostei muito! :)

Joarez Torres disse...

dexter, ahseuias,

e realmente quando se corre, só se corre..

Erica Vittorazzi disse...

Então corro muito devagar, porque penso em tudo...


beijos, Ferdi