sábado, 19 de dezembro de 2009
Uma tarde de lágrimas e descobertas.
- Mas meu cabelo está sujo.
- Ah, deixe de ser chata e vai logo.
- Quer ir junto?
- Pode ser..
Chegaram no local combinado e ninguém ainda tinha entrado, estavam esperando sabe-se lá o que, com rostos felizes:
- Vamos entrar?
- Estamos esperando.
Então nossa protagonista deu a mão ao seu pequeno irmão e foi correr em volta da praça, viram uma estátua, se aproximaram e haviam vomitado na base dela.
"Ew", disseram em coro e continuaram a correr.
Quando se cansaram, juntaram-se ao grupo de músicos que já estavam prontos para entrar no bar, apesar de nada ter mudado.
- Ah não, vai demorar, você disse que só daríamos um abraço, que saco.
- Ai, filha, calma, as meninas nem chegaram ainda.
A garota fez bico e se sentiu triste sem ter certeza do porquê, talvez fosse porque sua mãe tinha todos aqueles amigos incríveis e ela estava lá com eles, porém sozinha.
- A Fê faz teatro.
- Faz, é? Interessou-se o trombonista.
- Faço sim.
- É a primeira peça profissional dela, mas todo mundo adora. Endossou a mãe, que costumava ser caixista.
- É, é muito legal, estou adorando muito fazer.
- A última peça não-profissional que ela fez o Biel participou também, né, bebê?
- Sim, eu era o filhinho. Disse o irmãozinho meio tímido, meio orgulhoso.
- E você teve que ir assistir com uma toalha de mesa, né? Babador não serviu. Comentou a sorridente tubista.
A partir de então a menina não se sentiu mais sozinha, sentiu-se um deles, embora não fosse.
Falou de suas ambições musicais, recebeu conselhos, fez um monte de projetos mentais, conversou, conversou e conversou e notou o quanto era tola por desperdiçar tesouro tão importante que tinha dentro da família, toda aquela sabedoria musical, toda aquela alegria.
A banda.. a banda.. tinha uma outra caixista na banda e ela estava com câncer de mama, careca, extremamente alto-astral:
- Ah, só é um saco que quando você começa a melhorar da químio, chega o dia da próxima.
- É de quanto em quanto tempo?
- 21 dias. Mas graças a Deus já foram 2, são 6, faltam só 4.
- Ah, pelo menos já foi a metade.
- Como, mãe? Riu-se a menina.
- Sim, oras.. ah.. eu nunca fui da matemática.
- Sempre foi, se é da música, é da matemática.
- Mas paro por aí.
E até esse assunto era leve naquela mesa onde cada um bebia um suco colorido diferente.
Então começaram as lembranças:
- Posso contar sua mal criação? Perguntou a primeira caixista pra segunda, que sorriu.
- Pode.
- Na frente do seu marido? Riu-se a outra.
- Pode. E fez expressão fingida de vergonha carinhosa.
- O Mané (maestro) é como um pai pra mim, mas era bravo! E o pessoal da cozinha (bateria) sempre ficava de castigo, toda a molecada ia pro parque brincar nos brinquedos de graça, mas como tinha alguém né? E nesse momento ela sorriu um sorriso engraçado e repressor pra segunda caixista. Que errava nós nunca tínhamos intervalo e ficávamos lá, tan, tan, tan tarara, tan, tan.. Então nossa querida Ingride, depois do intervalo, pediu pra ir no banheiro, o Mané "não", "mas eu estou apertada", "toca e fica quieta". Ela olhou pra mim e disse "vou fazer nas calças" eu comecei a rir e falei "tem coragem?" quando vi começou a se formar uma poça gigante, o Mané ficou louco..
Pra você ver como desde sempre era geniosa.
- Ué, eu precisava, ele não deixou. Se defendeu ela sorridente.
O assunto fluía com naturalidade entre todos eles quando a saxofonista (e filha do maestro) chegou com a bombardinista. Depois das devidas apresentações e acomodações, mais lembranças:
- Você foi pra Brasília com a gente? Perguntou a mãe da menina para a saxofonista.
- Quando? Em 80?
- 18 de abril de 1980. Exatou o tocador de baixo-tuba.
- Que exatidão! É, pra comemoração dos 20 anos de Brasília, você foi?
- Claro, nossa, quantas lembranças.. Respondeu a saxofonista.
- É, uma que me ficou muito nítida foi o seu pai. Eu fui sentada do lado dele no ônibus e a viagem foi longa, né? Lembro que de noite fazia muito frio e meu blusão tinha ficado no maleiro, aí eu comecei a sonhar com minha blusa, diz seu pai que eu ficava tentando agarrar alguma coisa no ar, hahaha, tanto frio que até sonhei, mas depois que seu pai reparou que era frio ele tirou a blusa dele e me aconchegou, aí eu dormi o resto do caminho. "Com o que extavax a sonhares, mênina? Tentavax agarar all-guma coisa no arr". Imitou desajeitada um sotaque português e riu-se depois.
Eu amo muito seu pai, ele é meu mestre e maestro.
Continuaram a falar mas um aperto no coração da menina a fez parar de ouvir. Abriu seu celular e escreveu:
"Estou com um bando de músicos - amigos da minha mama - e lembranças, acabaram de contar uma história de agasalhos e me veio até lágrimas nos olhos lembrando de você.."
O resto do conteúdo da mensagem não nos importa agora, mas era verdade, aquelas conversas quase a fizeram chorar.
Esse amigo da mensagem era um enigma pra ela, um enigma sim, ela o amava muito, muitíssimo e por amá-lo tanto queria estar por perto, mas era sempre complicado demais, desgastante demais e isso a machucava, nunca duvidou da reciprocidade do sentimento, porém, não entendia muito bem tanta distância e às vezes considerava ignorar pra sempre aquela amizade. Mas era de verdade e portanto, impossível de esquecer.
De qualquer forma, a questão foi o cobrir em um ônibus frio de noite enquanto ela dormia, ele fizera isso um dia, coisa que a enterneceu tanto, mas tanto que um dia contaria aos seus futuros sobrinhos, voltou a musicalidade.
Falaram agora de uma surpresa que certa vez fizeram pro Mané:
- Nós ensaiamos "Solfejando" (era uma das composições do Mané, uma espécie de hino) durante um mês, sem que ele soubesse, claro e quando fomos tocar debaixo da janela dele.. A Isabel diz que quando ele ouviu, quando reconheceu a música dele começou a se trocar emocionado e falando "São meus meninos, são meus meninos".
- Meninos, pra ele sempre seremos seus meninos..
- Claro. E da sacada ele nos regeu e nós ficamos repetindo até ele descer, se ele não enfartou aquele dia, nunca mais enfarta.
A menina se emocionou com a emoção que o trombonista, que era também seu tio, contou a história e gravou pra sempre na sua memória quando, no meio da despedida, ele também, disse:
- Nós nunca mais vamos nos separar.
Em coro todos concordaram:
- Nunca mais.
Ela não pôde dizer nada, já que era uma convidada, mas desejou muito nunca mais se separar, nunca mais.
Eles eram gênios, da música e da vida.
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6 comentários:
é tão simples, mas fez a lagrima rolar, vai é por isso que meu apelido é bobão.
*-* Dorei
A gente procura um cronista que escreva merda para às sextas no Cagada de Urubu.
Adoramos seus textos.
Topa?
Adorei, Ferdi! Até por que sou músico...
Senti um quê de auto-biográfico nisso, não?
Você escreve de uma forma interessante... vou te seguir.
bjs
ferdizinha querida. você mé escritora, só isso basta. é mágico como eu consigo tocar em você e as vezes me sentir em com essas palavras que mais parecem roubadas do intimo do ser. adoro você. beijo
em terceira pessoa e em primeira ao mesmo tempo. Bom poder perceber isso. Eu simplesmente amei, sério.
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