Milton & Shirlei
Um português orelhudo, segundo ela.
A mulher mais bonita do mundo, segundo ele, "minha baixinha".
Meus avós, avós paternos.
Pra mim nunca existiu pessoa melhor no mundo que meu avô, nunca existirá, na verdade e nem que me amasse mais.
Minha vó sempre foi uma espanholinha braba com todo mundo, menos comigo.
Lembro de quando eu ficava na casa dela e toda tarde ela me levava pra passear no bairro e lembro também de dormir no quarto do meu pai, com a cama quebrada porque meus primos e eu pulamos tanto nela que quebrou e todo mundo achou graça.
Eu tinha um barzinho da Barbie que eles me deram e passava as madrugadas com uma luminária laranja achando a vida um máximo!
Ela só me dava banho quando começava a músiquinha do Castelo Rátimbum, mesmo que não fosse necessariamente a
nós duas esperávamos o ratinho ir pra toca, pra só depois eu ir pro banho, aliás nessa casa (eles já tiveram muitas, muitas mesmo), tinham dois box, e um buraco de um box pro outro, igual o que o Jerry morava e lembro que ela pegava uma bacia de alumínio e me dava potes de shampoo pra brincar, sempre do meu lado e só me tirava quando eu estava toda enrugada, com a água fria e finalmente dizia que queria sair, com toda paciência do mundo.
Lembro também de quando nós estávamos na Chácara que meu vô tinha e ele ia nos levar na sorveteria, daí eu e o Rafa, meu primo, sempre queríamos ir no carro deles.Aí nós entravamos pelo buraco do apoiador de braço no porta-malas e ficávamos lá, todos malandrinhos, todos rindinho, achando que estávamos deixando eles mortos de preocupação enquanto eles fingiam que não sabiam e "se desesperavam".
A sorveteria que eles nos levavam se chamava Jóia e ficava na frente de uma praça, o que era realmente jóia.
E olha como eu era a mimadinha dos vovós?


Os dois sempre me trataram como o bebê deles e ainda hoje me tratam.
Meu avô e minha avó sempre foram um casal que se amou, obviamente.
Eu tenho certeza mais que absoluta, pode cair um meteoro na minha cara agora, podem arrancar meu coração e me fazer comê-lo depois se um dia meu vô ou minha vó foram infiéis ou desleais um com o outro. Sério, que eu morra AGORA!
Sempre se cuidaram, sembre brincaram, sempre andaram de mãos dadas e todo mundo comentava em qualquer evento social, sobre como era lindo e fofinho ver os dois e como eles dançavam juntos, como se tivessem dançando a valsa do casamento, risonhos, gargalhando, todos com passinhos e todos brincalhões.
Esse dois, muito mais que a Disney ou que qualquer artificialidade dessas, me fizeram sempre acreditar que existe sim um amor da vida, uma alma gêmea ou seja como você queira chamar.
Você pode até ter um companheiro, ser feliz com ele e amá-lo, mas amor da vida só existe um, a diferença é que com o companheiro você tem sempre a opção de ir embora, com o amor da vida não, apenas porque não faria sentido abandonar um amor assim. E foi o que a existência do relacionamento deles que me fez e ainda me faz acreditar.
É difícil achar esse amor da vida, mas ele tiveram a INCRÍVEL felicidade - porque são pessoas que merecem também, né - de encontrar e viveram a vida mais feliz e apaixonada do mundo todo, bom, viveram não, ele ainda vive.
Não que minha vó tenha morrido, até porque se ela tivesse eu não estaria aqui escrevendo esse texto e sim morta também, né.
O que aconteceu, na verdade, é que há mais ou menos um cinco anos minha vó, minha espanholhinha linda, bravinha, dos olhos mais lindos e com a capacidade que só ela tinha de me fazer sentir especial e me mimar e amar tanto a vida toda, começou a desenvolver Alzheimer.
Lembro que logo que começou, eu passava a tarde com ela e com o Bielzinho que era bem bebêzinho na ocasião.
No começo era a coisa mais triste do universo, ela inventava realidades paralelas onde achava que meu avô estava sendo desleal e outras coisas que faziam ela sofrer de verdade.
Eu conversava com ela todo dia, imprimia pesquisas, explicava o que estava acontecendo e ela ficava desesperada "EU NÃO ESTOU FICANDO LOUCA".
Mas isso era quando ela tinha ainda alguma consciência.
O tempo foi passando, meu avô levando ela em todos os médicos do universo, dando todos os remédios e fazendo todo o possível, mas a doença foi se agravando, porque infelizmente é assim que ela funciona, o tratamento só retarda um pouco mais os sintomas inevitáveis, ok. Chega da parte triste.
"Como assim, Ferdi, a história do Alzheimer da sua avó tem uma parte feliz?"
Tem, não só feliz como a coisa mais bonita do mundo.
Bem, hoje em dia a vó não responde sempre, aliás, quase nunca, precisa usar fralda e ser cuidada 24 horas por dia.
No estágio que ela está muita gente teria colocado ela numa dessas clínicas de "cuidados especiais", (especiais, aham), afinal de contas "ela nem ia saber". Só a possibilidade de um negócio desses ofende meu avô.
O que ele fez quando as coisas foram complicando?
Meu avô é chaveiro (que é uma das profissões que eu acho mais legais no universo, aliás) e ele tem esse chaveiro no mesmo lugar há uns 40 anos, então ele comrprou a casa de trás, fez uma interligação e contratou uma pessoa pra cuidar dela, mas de modos que ele possa de hora em hora ir ver como ela está e dar carinho e atenção.
E vocês acham que por um segundo ele lamenta ou parece triste? Meu avô é a pessoa mais alegre que eu conheço, essa foto da boneca, ali de cima, foi tirada hoje na hora do almoço, ele todo bobo fazendo graça pra ela. Aliás aquela boneca, pra minha vó é na verdade um menino, o bebê dela que ela cuida, ela leva pra lá e pra cá e meu vô entra na onda, brinca com o bebê também, chama de menino e tudo isso.
Ele está sempre rindo e contando as coisas tragicamente engraçadas que ela faz e fala.
Ele dá banho, troca as fraldas, dá comida na boca e ainda assim consegue se sentir apaixonado, não é só respeito e consideração. É amor mesmo. E como eu sei disso?
É só olhar pra cara dele: