quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Numa cama.

Nós somos uma geração que vive meio mal porque nossos pais não se preocuparam o suficiente com as fachadas de suas lojas.
Nos deram a internet e com ela a realidade da vida de quem tinha pai com fachada de loja estética.
Como se a perfeição estética pudesse de alguma maneira compensar o rombo emocional que é, por si só, viver nesse mundo.
Como se os abusos doessem menos se o chão fosse de madeira.
Como se os ricos fossem de fato felizes.
"Dá para serem", ele me disse.
Dá. Qualquer coisa de fato dá.
Se você desejar com o fundo do seu coração um dia você vai acordar em uma mansão com o amor da sua vida do lado.
Mas você tem que desejar todo dia, toda hora, o tempo inteiro, sua vida empenhada em viver em algo que não existe.
Mais uma refeição meia boca.
Mais inspiração jogada fora.
Mais uma cadeira desconfortável.
Você quer anotar, mas não anda mais com um caderno, não acha que nada importante vai sair de dentro de você de novo porque você não se obrigou, não se forçou, não submeteu ou suportou, não, você fez questão de passar os últimos dois anos do jeito mais confortável possível.
Sem situações constrangedoras, sem amigos de amigos, sem estranhos no bar.
Só você e alguém igualmente confortável, igualmente confortante, igualmente calmo, igualmente calmante.
Agora todo mundo que você conhecia não te conhece mais e você nem lembra como era antes.
Só que não era muito bom.
Era vazio, triste, parecia que estava sempre escuro e assustador.
Eu não sei sobreviver a esse tipo de situação, mas é como se você descobrisse a fórmula e, a partir de então, pudesse finalmente dormir e descansar.
Numa cama king size.


terça-feira, 27 de setembro de 2016

Pecado.

Só tinham uma concessão quanto a minha liberdade.
Todo dia, 7 horas da manhã, eu teria que acordar com o barulho de alguém martelando alguma coisa com intervalos de 3 ou 4 minutos, pra eu achar que ia conseguir voltar a dormir, mas nunca dava.
Esse resto da minha "sentença" era pra continuar me torturando sem que eu pudesse dizer pra ninguém que estava sendo torturada.
"Todo dia acordo com marteladas".
"Sim, reforma é foda".
Não era isso o que eu queria dizer, mas ninguém me entendia.
Mudei de casa 8 vezes em 1 ano e ainda assim as marteladas estavam lá, todo dia, 7h da manhã.
Tentei explicar pra um psiquiatra sobre as torturas que eu tinha sofrido e como mesmo mais de um ano depois aqueles malditos ainda se davam ao trabalho de fazer isso comigo todo dia.
É claro que não acreditaram em mim.
E não deve ter ajudado eu falar que queria que os pregos estivessem sendo martelados na carne de alguém, mas não na mão, que nem Jesus, nas coxas, na parte interna das coxas.
Isso não deve ter ajudado.
O que eu me lembro depois disso é que as marteladas não paravam mesmo no hospital.
Que inferno de hospital é esse que começa obra 7 horas da manhã?
Não paravam. Mas eu sabia.
Eu sabia, eu sabia que aqueles homens eram poderosos.
Algum tipo de poder eles tinham que ter, pra arrastar alguém de uma clínica e ninguém ver, ninguém fazer nada.
E depois me manter em cárcere tanto tempo, torturando, mandando eu rezar ajoelhada no milho, dando chicotadas em mim, me fazendo usar uma cinta com chave, puxando o meu cabelo, me deixando passar fome, falando que Jesus tinha morrido na cruz pra perdoar meus pecados e eu "fazer uma coisa dessas".
Mas eu não tive opção, mãezinha. Ele me pegou pela mão, ele dançou comigo e disse que me amava, mãezinha.
A senhora falava tanto do seu amor com o pai que eu quis um igual.
Eu não sabia que era nova demais, não sabia que não era coisa que se fizesse.
Ele me amava, mãe, nunca me abandonou.
Que nem o pai nunca te abandonou. Foram os homens.
Diziam que o pai tinha nos abandonado, mas a senhora não queria saber de uma coisa dessas, tinha abandonado nada, esses mesmos homens que me torturaram é que pegaram o paizinho e fizeram maldade com ele, não é isso?
É isso, mãezinha, olha pra mim. OLHA!
Desculpa falar dessas coisas, é que eu sinto falta da minha mãezinha.
Ela não gosta mais de mim. Não gosta.
Ela não gosta de mim agora, acho que os homens também falaram mal de mim pra ela.

domingo, 18 de setembro de 2016

Marlene Tinha Dois Filhos

Isso poderia fazer alguém pensar que, por ter apenas dois, Marlene seria melhor mãe que as outras.
As outras eram todas as mulheres que tiveram mais que dois filhos, as parideiras, as "que não tem televisão em casa", as que "na hora de fazer... quero ver cuidar". E cuidavam muito bem, obrigada.
Diferente de Marlene que, por ter apenas dois, ao invés de amá-los mais, se ressentia.
Como se fosse culpa das crianças todos os abortos espontâneos que Marlene sofrera ao longo dos anos, como se os meninos tivessem ousado sobreviver em ambiente tão hostil quanto o útero de Marlene e, por isso, ela os odiava. Odiava porque ter um, ter dois filhos, te faz pensar que você poderia ter quantos quisesse, mas não foi o que aconteceu.
E como ousavam aqueles dois fedelhos encher uma mulher de esperanças falsas?
Como ousavam iludir assim um coração?
Marlene não os perdoaria nunca.
Todo dia antes de dormir pensava na benção que seria ver os dois mortos.
Finalmente descansar.
O marido com certeza a abandonaria, que outra benção.
Finalmente ela teria todo o tempo do mundo pra ser ela mesma, amarga, triste e cheia de rancor.
Sem ninguém pra atrapalhar com sorrisos.
Bendito o dia que aquelas crianças fossem assassinadas.
Mas...
Não era tão comum assim duas crianças serem assassinadas, eles moravam em um "bairro bom", seguro, era contar demais com a sorte achar que simples negligência daria conta do recado, não, se ela queria os fedelhos mortos, ela mesma teria que agir.
Não poderia ser nada incriminador, não fazia sentido trocar uma prisão por outra, não.
Tinha que ser algo bem pensado, algo inteligente.
A primeira coisa que ela pensou foi em chamar a atenção de algum golpista, dar a entender que tinha muito dinheiro, parecer distraída perto das crianças, ser uma presa fácil, mas... onde arranjaria alguém disposto a sequestrar e matar crianças?
Infelizmente não é tão fácil achar alguém que esteja disposto a ajudar tanto assim.
"Criança eu não faço".
Ninguém ajuda.
"Dizem pra gente que ser mãe é a melhor coisa do mundo pra isso, agora a gente tem que gastar um tempão pensando como se livrar dessa situação horrível".
Marlene se sentia completamente injustiçada. Mordia as unhas.
"Não é como se eu soubesse que ia nascer só dois dessa minha barriga amaldiçoada, pensei que ia ter vários, um ajudando a cuidar do outro, não isso".
Um dia no parque pensou na solução, convencer as crianças a ir andar de pedalinho sozinhas, na cabeça dela os dois nunca conseguiriam, o problema é que as crianças eram inteligentes e sequer quiseram ir sozinhas pra começo de conversa.
Chegando em casa ela deu uma surra de cinta nos dois, quanto mais eles choravam e perguntavam por quê, mais ela ficava com ódio e mais forte batia.
Quando o marido de Marlene chegou em casa teve que levar as crianças pro hospital.
"Melhor coisa que já aconteceu na minha vida", contava ela.
"Depois daquele dia eu finalmente sou livre. Tudo aqui é bonito. E quando tem crianças são sempre muitas, nunca uma ou duas. Aqui eu fico no jardim e tomo sol todo dia. Ninguém me abraça e pede 'mamãe, mamãe, estamos com fome', não, aqui quem pede a comida sou eu, aqui quem tem uma mãezinha sou eu, eu e não aqueles diabos. Sabia que eles estão mortos? Os dois morreram, graças a Deus, Deus sempre me amou muito, muito, sempre fui muito boa pra ele e ele me recompensou, não é, meu Deusinho?" e continuava indefinidamente dizendo da sorte que teve.
Marlene tinha dois filhos.
Não mais.


quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Darcy

Eu tava aqui depois de uma noite de suor e frio, ainda atordoada pelo estranho ritual que é pra mim acordar, quando ouço chamarem meu nome na janela.
Eu moro no centro da minha cidade, minha família mora há mais ou menos 15 minutos dali, o que torna me chamarem na janela muito pouco usual.
Houve um tempo em que o principal meio de comunicação entre eu e minha família era pela janela mesmo, tempo esse em que vivíamos eu, minha mãe, meu irmão e meu pai num apartamento que dava com a janela pra casa da minha vó, nesse mesmo prédio moravam mais duas tias, na rua de baixo outro tio, na do lado dois primos e, enfim, minha família morava toda na mesma cidade, em bairros muito próximos.
Quer queira, quer não, eu via pelo menos 10 membros da minha família todo dia.
Dentre esses membros, sempre a tia Darcy.
A tia Darcy nasceu debaixo de uma árvore na frente do hospital porque não deu tempo de entrar.
Ela se preocupava com a educação de um jeito que eu raramente vi em outras pessoas, por isso, claro, foi professora de Biologia, minha mãe foi aluna dela e até hoje diz que nunca aprendeu mais.
Além de professora foi também diretora, inclusive da minha escolinha, eu me sentia super protegida, sobrinha da diretora, e por isso até as crianças me tratavam melhor, mas ela nunca fez distinções.
Um dos sonhos da minha tia era ter sido médica, ela tinha toda a vocação, mas os estudos eram caros e desde cedo ela ajudava a família com dinheiro.
Aliás, ajudar com dinheiro é uma coisa que ela fazia pra todo mundo, era você precisar de ajuda que antes de você pedir ela te oferecia.
Sempre gostou de presentear todo mundo, quando eu era pequena ela ia toda semana em uma loja de departamento específica e voltada cheia de roupas, uma pra ela, as outras pra mim, pras minhas primas, primos, tias, ela era realmente generosa.
E amorosa.
E palhaça.
Por exemplo:
Mãe, vó e tia Darcy
A tia Darcy também sempre foi muito elegante, falava francês que aprendeu no colegial e nunca esqueceu, se emocionava com as belezas da vida e me chamava de "Sua Negra", de amor.
É muito surreal pra mim acordar com a notícia que uma das tias mais presentes na minha vida não vai mais estar lá.
Quem vai sentar na ponta da mesa?
Quem vai fazer um monte de salada de maionese gostosa nos churrascos porque eu sou vegetariana?
Quem vai ter o pé do tamanho do meu e trocar sapatos comigo?
Quem vai me confortar quando eu for lá chorando?
Ela tinha me emprestado um livro de botânica esses dias e disse "mas é vai e volta, amo muito esse livro", esse aqui:
E de repente nem vai voltar, minha mãe disse que pode ficar pra mim porque ela deixou tudo que tinha pros sobrinhos.
Pros sobrinhos.
Ela nunca teve filhos e sempre tratou todos nós como se tivesse tido vários.
Nem dá pra descrever o quanto a vida me magoou por tirar a tia Darcy de mim.
Eu sei que as pessoas morrem e a vida continua, mas... eu me sinto injustiçada.
Primeiro a tia Alzira, depois o Marcel, depois a vó, depois a tia Darcy, tudo isso em dois anos e, nossa, odiei. 
Quero voltar aos 7 anos e ter todas as pessoas que eu amo de volta.

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Uuel

Nós tínhamos decidido ir pra um país pequeno e pouco comentado da Europa, um lugar que não só a gente não conhecia, como nunca tinha ouvido falar de nenhum dos seus pontos turísticos, só entramos em um avião e desembarcamos por lá.
A primeira impressão que eu tive foi que as flores que davam aqui eram as mesmas que davam lá, mas será isso possível?
Andamos por umas ruas de pedra até encontrarmos uma espécie de restaurante, entramos, fora os trabalhadores, mais ninguém no lugar, o que não era de surpreender, em um país com população estimada de um milhão e duzentos mil habitantes.
Só a minha cidade tem mais gente que isso.
De qualquer maneira, ao entrarmos no restaurante a atmosfera de algum jeito se modificou, algo aconteceu no ar, nada que pudesse ser explicado e por isso ninguém falou nada.
O lugar era muito bonito, os móveis eram majoritariamente de madeira, com bonitas toalhas, um lago cristalino, cheio de natureza e trabalhadores muito muito impacientes, como se eles soubessem de alguma coisa que a gente não sabia, alguma coisa que queria que a gente não estivesse lá, mas não nos disseram nada.
A parte que começa a ficar palpavelmente estranha é a que ao invés de nos encaminhar pra uma mesa, nos levaram pro jardim, pra frente do lago e de alguma maneira nossas bagagens não estavam mais conosco.
Uma das funcionárias começou a me mostrar uma mesa, com uma caixinha cheia de compartimentos, dentro dos compartimentos, pequenos vidrinhos com florzinhas afogadas, tão pequenininho, tão bonito, é como se a moça soubesse que se eu fosse roubar alguma coisa, seriam aqueles frasquinhos, eu tinha um impulso muito forte de querer pegar os frascos, pôr no meu bolso e ficar comigo pra sempre. Assim o fiz.
Imagino que situações semelhantes tenham se apresentado aos meus companheiros de viagem, mas como ficará claro mais pra frente, não tive a oportunidade de perguntar.
Mas é como se eles quisessem provar um ponto, como se dada as devidas circunstâncias, todo mundo era vil.
Em algum momento começaram a aparecer os animais. Animais que não pareciam que deviam estar ali.
Por exemplo um tigre, adulto, como que hipnotizado, apareceu perto do lago, como uma miragem assustadora e linda, solta, bem ameaçadora, pra falar a verdade.
Eventualmente uma televisão do jardim foi ligada e nela cenas de tortura começaram a passar.
"Se você vai acabar fazendo isso com a pessoa, pra quê casou?"
Os funcionários pareciam nos odiar de maneira venal, como se nossa existência perturbasse a ordem de tudo.
O lago começou a ficar esverdeado, nojento, as árvores espontaneamente começaram a cair.
Nos levaram pra dentro do restaurante e quando parecia que finalmente tudo ia se normalizar eu notei alguns gatinhos debaixo da mesa, eu, que amo gatinhos e tenho três deles, disse: "Que lindos, são de vocês?" no que um dos funcionários me respondeu: "Não, não temos gatos nessa região, mas eles sempre aparecem quando precisar avisar do perigo, eles vêm de onde quer que seja pra avisar, se você, por exemplo..."
Entendi imediatamente que tinha que voltar para casa e eu só fui, sem bagagem, amigos, só corri em direção do aeroporto com nada mais que minha carteira e passaporte.
Os gatos que estavam debaixo da mesa vieram todos correndo junto de mim, inclusive o tigre, que visto assim, correndo do meu lado, não me apresentava perigo nenhum, só me avisava, como se pressentisse, como se soubesse de alguma coisa que eu ainda




Acordei.



E o nome da cidade em que estava, significa NOVO.