Era uma vez uma promessa, promessa de riquezas, de paz, de poder de consumo.
Maria finalmente ia ter o que merecia, tudo do bom e do melhor.
Ela e os 4 filhos dela finalmente teriam a casa, o conforto, a boa educação, a nutrição, as atividades extra-curriculares, eles teriam um carro e roupas novas.
Nada extremo, não é como se eles fossem mudar pra uma mansão (como o tio Cezar), mas eles finalmente poderiam comprar da comida que queriam, não da mais barata possível.
Televisão, internet rápida, roupa de cama nova. Nada extravagante, mas tudo muito bom e muito digno.
Até uma cadeira de escritório a Maria ia poder ter, ela estava casando bem.
E por alguns bons anos eles tiveram tudo, pizza todo domingo, brinquedos espalhados pela casa, bicicleta e chuveiro a gás. As contas sempre pagas sem atraso ou ansiedade.
Paz.
Até que um belo dia, voltando de alguma festa ou viagem, encontraram a porta da casa já aberta.
Apreensivamente entraram pra constatar que alguém tinha levado tudo.
Todas as roupas, cama mesa e banho, a televisão, as bicicletas, não tinha sobrado muita coisa.
E pior que isso, agora eles não se sentiam mais seguros vivendo ali.
A solução foi alugar um cantinho pequeno, só enquanto eles arrumavam a casa nova.
Dois quartos, crianças pequenas, podiam dividir um quartinho entre elas.
Os confortos também tinham que ser readquiridos aos poucos, apesar de ter todas as dignidades, ninguém aqui era rico. Mas ia dar tudo certo, eles iam conseguir sair dessa e voltar pra vida digna e confortável que já tinham se acostumado com.
Porém cuidar de 4 crianças não é fácil, ainda mais num ambiente tão pequeno e foi assim que começaram as brigas. Elas foram se intensificando.
Eventualmente até um prato foi lançado na direção do outro. Maria e seu esposo não estavam passando por um bom momento.
Mas pra sorte do esposo, a vizinha de porta era uma moça muito boazinha e compreensiva, sempre arranjava um tempo pra ouvir os lamentos do esposo e apresentar novas perspectivas. Ele não precisava continuar passando por aquilo, "assim como casou, hoje em dia descasa".
Tão boa a vizinha, tão simpática.
Eventualmente eles se davam tão bem que a moçoila se sentia a vontade de vir só de toalha, na frente das crianças, pra pedir pra ele ajudar com o chuveiro. Muito amigos.
E assim eventualmente ele, o esposo e ela, a vizinha viraram mais que amigos.
E o esposo decidiu que não era mais esposo. Que não ia mais cuidar das crianças (apesar de pela narrativa não parecer, as crianças eram dele, todos filhos dele). Ele simplesmente ia embora.
Deixar Maria e suas 4 crias no apartamentinho pequeno e claustrofóbico.
E foi.
Mas ele era muito bom e apesar de não cuidar mais dos seus filhos, cuidou muito bem da filha única (de outro casamento) da vizinha. Cuidou como se fosse dele.
E os dele ele via, vez ou outra, pagava a pensão e se sentia muito satisfeito com a própria escolha, afinal ele tinha que fazer o que era melhor pra ele.
"E a Maria é inteligente, ela se vira". Sem remorsos.
Acontece que fica difícil se virar quando você tem que cuidar de 4 crianças, não é como se você pudesse arrumar um emprego e deixar uma cuidando da outra. Então a Maria passou a depender da pensão.
Fazia um trabalho aqui e ali, quando dava, mas em geral dependia de uma ínfima porcentagem da renda do ex-marido.
Toda compra que ela fazia era a mais barata possível. Todo desconto, tudo que ela conseguia economizar, economizava. Nunca comprava nada pra ela e vivia sempre em função dos seus filhos.
Sempre e sempre fazendo de tudo e se virando como dava, então às vezes era um pouco insultante comparar a própria vida com a vida de outras pessoas que conhecia.
O orçamento que ela tinha pra alimentar os filhos pela semana inteira outros podiam gastar em doces e brinquedos, num dia só. Sempre tinham passeios e viagens e coisas que ela não podia fazer.
Era frustrante e parecia muito injusto.
Por que ela tinha que viver com a corda no pescoço e outras pessoas nem chegavam a pensar na sorte que tinham?
Por que enquanto ela comprava a marca mais barata possível o outro se recusava a comer se não fosse da marca tal?
E pior de tudo, por que ela tinha que gastar o tempo e a energia dela tratando bem essa gente?
Essa gente ingrata, gente ruim, que inventava os próprios problemas, gente arrogante que se achava um máximo só por ter dinheiro. Riquinhos de herança.
É claro que ela não ia sair do caminho dela pra ser boa pra essas pessoas, eles que se virem, assim como ela se virava. Eles não tem tanto dinheiro? Que joguem dinheiro nos problemas.
E assim a frustração, a raiva e o amargor foi se instalando, como uma ferida aberta se infeccionando, continuava a crescer. E crescer. E não parava.
E a Maria não precisava da ajuda (nem da esmola) de ninguém. Ela dava um jeito.
Mas tem coisas que não tem jeito, que só o conforto, a boa nutrição, a boa educação e as atividades extra-curiculares são capazes de dar. Não tinha nada que ela pudesse fazer.
E por não poder, não fazia. E se amargurava de não poder.
Mas pelo menos ela via essa gente caindo do cavalo, ficando pobres também, sem ter nada...
Eles se recuperavam às vezes, mas no coração dela ela queria mais é que eles se ferrassem mesmo. Porque é difícil conviver com a gritante desigualdade social e se manter imparcial, se manter calmo e em paz.
É difícil ser bom quando a vida não é boa.
E é fácil ser bom quando ela é.
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