sábado, 1 de março de 2025

Um conto de várias partes. Parte I.

 - Eu preciso de ajuda. Ele disse, enquanto se ajeitava na poltrona.

- O que aconteceu?

- Eu não aguento mais a minha esposa, eu não quero mais estar perto dela. Ela é agressiva, violenta. Não só na minha direção, das crinaças também. Tudo que eles fazem ela vai atrás deles com uma cinta. Eu sei que eles aprontam, mas eles são só crianças. O mais novo descobriu que a única maneira de se sentir menos violado é ridicularizando ela, rindo, chamando ela de louca. Só que isso só deixa ela mais e mais violenta, esses dias depois de uma surra eu fui olhar ele no quarto e ele estava ardendo em febre.

Eu não aguento mais.

- E por que não se divorcia?

- Porque não quero deixar meus filhos nas mãos dela. Mas eu não aguento mais, ela tenta competir comigo o tempo todo. Ela se formou médica e eu sou engenheiro, mas agora ela não trabalha mais, pra cuidar das crianças, mas invés disso ela só sabe descontar neles a raiva de não ter como receber validação através da profissão dela. E também tem isso, não acho que ela tenha se formado pra ajudar ninguém, ela só quer se sentir superior. Ela sempre sempre acha que tem razão. Na nossa última discussão, eu provei que ela estav errada e ela jogou um copo na minha direção. E ela nunca pede desculpas. É sempre culpa do outro. Esses dias ela ficou nervosa com um negócio que a mais velha fez e simplesmente arremessou o celular do outro lado da casa, ele se espatifou e ela teve que comprar outro. Quando veio me contar cupou a criança, mas a criança nem estava em casa quando isso aconteceu. Nosso mais novo gosta de brincar de Barbie, diz que as cores preferidas dele são roxo e rosa, ele é um menino delicado. E ela não aceita ele de jeito nenhum, faz questão de fazer comentários homofóbicos, de dizer o quanto ela odeia gays... E ela ainda tenta parecer uma pessoa culta, educada, com pensamentos ponderados. Isso na frente dos outros, mas com a gente... ela é um poço de ódio. Nada nunca é bom o suficiente. E só sabe reclamar, eu trabalho todos os dias, das 8h às 20h e quanto chego em casa é só reclamação, que eu não ajudo com a casa, que ela tem que fazer tudo sozinha, mas eu faço tudo que eu consigo, eu dou banho nas crianças, dou a janta, limpo o chão, arrumo os quartos. Eu não sei o que ela quer de mim. E você é tão equilibrada, é tão mais fácil falar com você.

Um barulho de chave virando sobressalta os dois. Aquela hora eles deveriam estar sozinhos.

- O que ela está fazendo aqui?

- Veio pagar o condomínio.

- Ah...

Ela entrou com a cara emburrada em um dos quartos e fechou a porta com violência.

- Bom, então já vou indo.

- Até mais.



quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Vazio.

 A casa vazia.

A expectativa de ver ela virando a esquina da porta.

Não tem mais o cheiro dela pela casa.

E nem ninguém tentando matar o macaco.

Não tem mais o latido grave, nem ela atrás de toda live.

Ninguém pra me defender, mas também não tem nada que eu precise ser defendida de.

Ela sabia que eu estava bem, que estava tudo bem.

E nada vai estar bem de novo.

O fucinho gelado, a patinha pedindo carinho, as palhaçadas.

Como pode, né?

Nunca mais.


quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Petúnia Bel.

 Petúnia, a cachorra mais doce que já existiu.

Eu não acredito que já tô falando dela no passado.

Hoje eu acordei com um barulho estranho, um barulho de água vindo do vizinho, levantei correndo e a Petúnia, que já tava doente, me olhou, suspirou e morreu.

Assim, definitivo. Deixou de existir.

Minha cachorra, que nunca me deixava sozinha.

Que ia comigo pra onde quer que eu fosse.

Que falava comigo sem parar, eu dublava ela, pros outros entenderem e sempre achavam que eu tava fazendo graça, mas a verdade é que eu só tava traduzindo. Ela falava comigo, o tempo todo.

Esses dias eu me arrumei pra gravar um vídeo e estava toda bonita e feliz com meu vestido novo, ela me olhou com aquela carinha docinha dela e sorriu.

A Pepe sorria. 

A Pepe sorria e brigava também, quando ela achava que alguém ou alguma coisa tava me incomodando ela fazia um latido grave de cachorrão "au au au". Deixando claro que era melhor acabar com esse comportamento ou ia ter que se ver com dona Pepe.

Ela, que nem eu, amava comer. Comia até as paredes se deixasse. 

Vivia lambendo o chão, pra ver se tinha caído alguma migalhinha de pão ou alguma comida humana gostosa. Ela tinha dor de estômago então a gente só dava ração, petiscos, osso e churru.

Mas ela amava uma comidinha humana.

Ver minha bebê recusando comida matou um pedaço de mim. Pedaço de mim.

Quantas músicas de amor não cabem exatamente no choro de perder minha melhor amiga?

E agora, que faço eu da vida sem você?

Eu perco o chão, eu não acho as palavras, eu ando tão triste, eu ando pela sala.

Ad infinitum...

Eu tô tão triste que meu cérebro fica conjurando essas imagens de mortes terríveis e violentas, um machado na minha cabeça, um tiro no meu rosto, pra tentar entender como eu posso sentir tanta dor.

Mas ele não entende não, aí entra num estado de fuga...

Até uma live eu abri pra ver se sentia algum senso de normalidade, porém todo dia quando eu começava a me arrumar ela já ficava do meu lado se preparando, depois passava a live inteira do meu lado.

Tudo, todo pedacinho da minha vida tem Petúnia.

Eu não sei viver sem ser com ela, eu não sei ser uma adulta sem contar com a presença dela.

Ela me ajudava a fazer sentido de tudo.

Passei mais de um terço da minha vida na companhia desse cão, desse neném, desse anjo.

Eu sei que todo mundo ama seu cachorro e fala que ele era o melhor cachorro do mundo, mas a Petúnia era mesmo, o mais leal, mais doce e carinhoso, mais engraçado.

Ela teve que ficar 4 dias internada no hospital veterinário e uma das vets me contou que eles disputavam pra ver quem cuidava dela, porque ela era tão boazinha, não reclamava de nada.

Tão amada.

Nossa família inteira está em pedaços. Nada nunca vai ser tão bom quanto como quando a gente tinha a companhia dela.

A vida segue, a gente se adapta, mas não de fato.

Pra sempre fica faltando algo, um rombo no coração no formato dela.

Um rombo no coração chamdo Petúnia Bel.

Minha Pepe, minha cu.



E agora?
Que faço eu da vida sem você?


Não faço.



                                                                                                                                                                                                                                              

terça-feira, 28 de janeiro de 2025

Gratuito (ou unhinged).

 Eu sonhei que você era meu par.

Tão amoroso, quietinho e sensível, como eu imaginava que você era.

Engraçado também.

A gente tava num show do The Used, um cara da banda vinha e me beijava e eu só conseguia pensar em você. Eu não queria beijar aquele cara, eu gostava de você.

E você é tão sensível. Como eu ia te contar isso?

Era a última coisa que eu queria fazer. O seu rosto tão nítido na minha mente.

Faz mais de 13 anos que eu não te vejo.

Eu nunca falei com você, nunca nem te dei oi. Só te olhava de longe e gostava de você.

Sempre gostei de você. É engraçado que eu não lembro de nenhum amigo seu, ninguém em comum que a gente conhecesse, eu só lembro que eu te via nos lugares que eu ia e eu gostava de você.

Gratuitamente. 

A gente nunca trocou uma palavra, mas tenho seu rosto mais nítido na minha memória do que da maioria dos amigos que já tive. Acho que porque eu sempre senti que nós seríamos bons amigos.

Esse tipo de sentimento me faz ter certeza absoluta que parte de mim é completamente inadequada, pra não ser um pouco mais rude e direta.

Imagina que esquisito e inquietante saber que alguém que você não conhece sempre quis ser mais próximo? O estranho é que eu não acho tão estranho assim.

Primeiro a gente frequentou os mesmos lugares, depois a gente fez cursinho juntos. Nessa época eu estava mudando, pela primeira vez na vida não queria ter vários amigos e entendi que estava tudo bem não querer socializar.

Antes eu me forçava, porque tudo que eu queria era ser normal. Mas bem nessa época eu aceitei que não era.

Justo nessa época que eu podia ter inventado algum motivo pra falar com você, eu resolvi que não ia falar com ninguém. Não durou muito.

Logo que eu entrei na faculdade não consegui continuar me escondendo e quando fui ver já tinha todo esse grupo de amigos que ia comigo pra lá e pra cá e queria me ver mesmo quando a gente não tava estudando.

Mas da onde meu cérebro tirou sonhar com você mais de 13 anos depois da última vez que eu te vi?

Ele eu até entendo, fomos melhores amigos de infância, mas você eu juro que não. Não sei nem como é sua voz. Que passa?

Eu não sei, mas tenho certeza que não é sobre você. Tenho certeza que tem a ver com essa minha mania de ter medo da felicidade, de estar mais confortável em lugares difíceis.

Nessa época eu aceitei que eu não era normal, mas eu nem sabia o que tinha de diferente em mim e eu não usava a palavra diferente, usava a palavra errado.

Eu não conseguia entender o que tinha de errado comigo.

Qual era o meu problema? Qual era o meu problema?

O mais bizarro é que eu não sei seu nome, não faço ideia. Só sei seu apelido que, pensando melhor, nem sei se sei mesmo, porque me contaram seu apelido. Ou seja, talvez nem isso eu saiba. Que sensação estranha.

Fiquei tentando lembrar seu nome com toda força, mas nem sei se tem como lembrar.

Que nostalgia esquisita. Nostalgia e raiva.

Raiva de ter sido uma adolescente tão covarde. Eu tinha mais medo de ser bem tratada do que de ser mal tratada. Se eu achasse que você seria desagradável era capaz de ter dado um jeito de falar com você. Mas era óbvio que não. Eu sei lá o que fazer com isso.

Queria saber como você está hoje em dia, o que você faz, onde você mora.

Ou será que não queria estar aqui?

Onde mesmo com meu pai doente, minha cachorra doente, eu doente, tudo está relativamente bem?

Todo dia eu acordo e tenho um propósito, não me preocupo com dinheiro, nem com crueldade, estirpei da minha vida toda pessoa que me fazia mal, posso passar meu dia inteiro do lado dos meus animais, tenho um companheiro que é meu melhor amigo, faz tudo por mim e está extremamente saudável, tenho meus livros, minhas aquarelas, meus fãs e clientes, tenho um computador novo, roupas novas, decoração nova, faço exercícios, não me alimento do sofrimento de animais, cozinho melhor do que nunca, sei onde comprar meu tofu gostoso e barato, meu jardim tá lindo e florescendo de novo, tenho que decidir se quero ir pra praia... tá tudo bem.

Meu pai tá sendo tratado, minha cachorra também, eu também. 

Não tem um frizz nesse meu cabelo. Tá tudo bem.

Eu sei lá o que fazer quando tá tudo bem, não tem nada pra odiar em mim, terapia em dia, eu sei lá como vou dar um jeito de me odiar e é aí que entra você.

Aí que entra meu ex-melhor amigo. Aí que entra o passado, que eu nunca vou conseguir mudar, entra essa menina que fazia o que dava com o pouco que tinha e tava sempre estressada e assustada e achando que fez alguma coisa errado. Colocando travesseiro na frente da barriga quando sentava.

Escrevo esse texto enquanto tento entender: o que meu cérebro queria com isso? Qual é a dele? Que que foi? Será que era essa sensação de estranhamento e nostalgia que ele queria suscitar em mim? Pra que isso?

Ou é só o bom e velho medo do outro sapato cair.

          Inferno de sapato.




sábado, 18 de janeiro de 2025

Laísa

 Laísa era uma pessoa problemática.

Tinha nascido com o cérebro diferente, em circunstâncias longe de ideais e em uma família gigantesca.

Eram 10 tios e 14 tias. Muitas opiniões.

A mãe de Laísa não tinha voz pra contestar nenhum desses milhares de irmãos, ouvia tudo em silêncio, concordava com tudo.

O pai dela mesmo que quisesse ter alguma opinião, não seria ouvido.

Quando Laísa estava crescendo ela percebeu que a melhor maneira de não ser maltratada era tentando agradar cada uma dessas pessoas. Esses tios e tias e seus milhares de filhos.

Mas como ela poderia agradar todas essas pessoas sendo que cada uma delas gostava de uma coisa diferente? Não era bem assim.

A maioria delas só fazia de tudo pra ser bem visto também pelas outras pessoas, porque a verdade é que quando você não era bem quisto a vida virava uma tortura.

Tantas opiniões.

Mas a gente sabe que não importa o que a gente faça sempre vai ter quem não goste da gente.

E abuso nesse ambiente não só era tolerado, como era tido como motivo de risada.

Agora não vou rir de ser espancada? Magina, quem sou eu, uma fraca?

Tudo é engraçado. E todos são tão liberais.

Exceto quando o assunto é liberdade.

Aí não pode ser gay, gordo, puta, não pode não fazer faculdade, ser neurodiverso, não pode ser preto ou aparentar ser qualquer coisa indesejada.

Pobre todos eles são, mas tem que fingir que não.

E pode roubar também, um do outro.

Empresta milhares de reais pro herdeiro e fica tranquila que ele não vai te pagar.

Ajuda a mentirosa que 20 anos depois continua perseguindo e tentando achar justificativas sobrenaturais pra coisa mais normal do universo: ser abandonada porque se é insuportável.

Imagina alguém que nunca pensou um dia da prórpia vida que podia estar errada, é ela.

Mas com certeza foi macumba. Porque ela achou trabalhos na encruzilhada.

Vai lá numa religião que não te cabe perguntar do seu abandono, extremamente respeitoso.

O alcolatra que conta sobre o alcolatra pior que ele pra parecer menos mal.

A mimadinha que quer acusar os outros de terem tudo.

A que só sabe pensar na herança da matriarca acusando os outros de roubo.

Braço curto.

Zero ajuda.

Na hora de reclamar a linguinha tá sempre pronta, mas fazer uma companhia pra velhinha?

Ela tem que lavar a louça. Dos filhos de quase 40 anos dela.

Ela é muito ocupada, tem que lavar a louça.

Laísa a vida inteira tentou passar pano, entender a perspectiva de cada uma dessas milhares de pessoas.

Ah, mas esse passou por isso, aquele passou por aquilo.

Mas não interessava o que ela estivesse passando o julgamento era sempre cruel. Radical, inaceitável. Abuso psicológico mesmo.

Era tão difícil que por anos ela simplesmente dissociava. Estava lá, mas não estava lá.

A mais profunda e completa negação. Achava até que tinha uma "família unida".

Fazia de tudo pra não perceber as crueldades e se percebia, esquecia em seguida.

Superpoderes do cérebro neurodivergente.

E com seus amigos fazia igual, fingia que era uma garota nada problemática.

Era uma pessoa sempre fazendo gracinha e nunca discutindo as coisas horríveis que ela passava, a maioria dos amigos dela não fazia ideia de quão desestruturada foi sua criação.

Aliás todos.

O melhor amigo dela a via como alguém normal. Esquisita, mas por opção. Normal.

Quando ela cresceu e começou a tomar decisões questionáveis na vida, nenhum dos amigos dela entendeu.

Mas você sempre foi tão isso e aquilo e aquilo outro. Tudo que ela queria que achassem dela, zero realidade.

A máscara tão pesada que ela simplesmente não sabia se nenhum dos amigos dela chegaram a amar ela de verdade. Sabia sim. Não dá pra amar quem a gente não conhece.

Ela cresceu e ficou completamente sozinha. Ainda passando por todos os abusos de quem veio de uma Grande Família. Tudo muito engraçado.

E não interessa nem quem ela é ou deixa de ser, porque no caso da Laísa a marginalização veio de berço.