Não, não eram como Joseph and Alexander, na verdade as duas não se conheciam ou viriam a se conhecer não fossem pelos acasos da vida.
Julia morava com a avó e os tios na Vl. Mariana, Emily com a mãe e o irmão em Sorocaba.
Uma não tinha nada a ver com a outra, enquanto Julia era altiva e exalava um frescor natural, Emily era invisível aos olhos menos atentos.
Cabelos longos, lisos e absolutamente louros, um sorriso branco e absolutamente perfeito, grandes olhos azuis de cílios cumpridos, corpo esguio e ágil, quase como uma lebre, parecia flutuar. Era dona de uma beleza unânime, além de uma simpátia comentada por qualquer um que lhe dirigia a palavra, inteligente e boa aluna, Julia adorava as possibilidades que a vida lhe oferecia, tinha o sonho de se tornar fotógrafa e comprar um apartamento na Chacará Klabin, pra viver sozinha.
Apesar de ter um convívio familiar perfeitamente harmonioso (seus tios - que não podiam ter filhos próprios - tratavam-na como uma e sua avó a amava acima de qualquer coisa), Julia gostava da idéia de ficar sozinha, porque no momento que sua mãe deixou-a dessa forma e se suicidou, depois de ser abandonada pelo seu pai, ela aceitava a solidão como uma condição mais do que natural do seu ser. Não tinha dó de si mesma por ser orfã ou achava o mundo menos justo por isso, aceitava como quem aceita que o céu é azul e que a morte é um mistério, ela não podia fazer nada a respeito e além do mais vivia absolutamente bem.
Era uma garota de muitos e sinceros amigos, porque apesar de sua alma solitária, gostava de dividir sua solidão. Pra ela, todos era sozinhos sem o saber, por um motivo ou outro.
Mas parou de pensar assim depois que conheceu Emily.
Cabelos negros, espesos, muito brilhantes e curtos, ela usava aparelho nos dentes e um óculos à la Janis Joplin (Janis era sua grande heroína, conheceu-a ainda antes de nascer, no ventre de sua mãe que também é uma grande fã), é baixa e pequena, muito branca e magra, seus olhos são de um castanho amarelado excêntrico e bonito, amendoados e semi-cerrados. Era uma menina aparentemente comum, exceto por meia dúzia de hábitos e gostos e a infelicidade que trazia por ser humana, explicava: "Parece que eu nasci errado, preferia ser uma árvore ou um vegetal do que pertencer a essa espécie".
A verdade é que Emily estava sempre a pensar demais, não era uma boa aluna, apesar de muito inteligente e educada, porque desprezava a instituição escolar (também por pensar demais e saber todas as falhas e o quão óbvias e simples seriam as mudanças para torná-la um lugar ideal), mas nunca incomodava ninguém, sentava sempre em um canto com seus dois melhores amigos Kevin e George, mas só falava quando sabia que não atrapalharia, de outra forma ficava a ler seus livros, escutar suas músicas ou rabiscar seu caderno, numa mudez exemplar, pensava que se alguém queria aprender, ela não tinha o direito de atrapalhar.
Emily é muito disciplinada com as coisas que ama e ama muitas coisas, coisas, não pessoas.
Ama, por exemplo, miniaturas (às vezes queria ser uma delas e Kevin brinca que ela praticamente é), arco-íris, cinema, livros, música, riachos, cadernos, escrever, fingir que é outra pessoa e, mais do que todas essas coisas, sua mãe e seu irmão. Apesar de ter Kevin e George ela pensa que a amizade deles é condicional e nas novas circunstâncias que nasceriam para ela um dia, eles seriam substituidos por outros, enquanto que sua mãe e seu irmão estariam sempre junto.
Sua mãe a criou sozinha sem nunca ter mencionado a ausência do pai, seu irmão era dois anos mais velho e o único que conseguia fazê-la gargalhar sinceramente mais de uma vez seguida, nos últimos tempos eles não passam muito tempo juntos porque as faculdades e o trabalho tomam muito tempo dele, além dos amigos, porém ele nunca deixa de reservar algum instante do dia para fazê-la gargalhar sinceramente duas vezes seguidas.
Emily e Julia.
Emily foi para São Paulo com a mãe passar as férias de julho na casa de sua avó, que morava na Vl. Mariana. Lá era amiga de uma garota muito bonita, chamada Karina, exatamente 6 meses mais velha que ela, filha da vizinha de sua vó. Ela gostava de ir pra lá, apesar de sua amiga nunca poder sair e sua mãe (há uns cinco anos, desde a morte do seu pai, que Emily era muito apegada) dedicava as férias a arrumar a casa da mãe, conversar com ela o tempo todo e ensinar algumas músicas pra ela no piano, de modo que a única coisa que Emily fazia por lá era conversar com Karina.
Porém, nessas férias, Karina não estava, fora para Orlando fazer intercâmbio e ficaria lá por um ano, ela já sabia disso (elas conversavam todos os dias por msn, apesar de só se verem uma vez por ano) mas não deixou de ficar decepcionada ao não encontrar aquela menina esguia de cabelos acajú e olhos extremamente verdes que tanto fazia bem a ela. Nos primeiros dias passava o tempo todo lendo, porém, logo seu acervo acabou e ela passou a frequentar uma grande livraria (aliás, a maior da América Latina) que ficava não muito longe da casa de sua avó, na Av. Paulista.
Julia costumava ir com os tios e a avó nas férias de julho pra casa que tinham em Campos do Jordão, porém, como esse inverno estava especialmente rigoroso e sua avó pegou um resfriado, a viagem foi cancelada dessa vez. Por mais que gostasse de Campos e dos amigos que tinha por lá, acabou se alegrando por não ir sem saber porquê e decidiu aproveitar as belezas da sua querida cidade.
Nos primeiros dias visitou o centro velho, o mercado municipal, o pátio do colégio, o museu do imigrante, o museu da língua portuguesa, a pinacoteca, tomava sorvetes nas praças (só tinha esse hábito no inverno) e fotografáva tudo que achava que valia a pena, sempre sozinha e se sentindo totalmente livre. Depois decidiu atualizar-se cinematográficamente e começou a visitar os cinemas alternativos da Paulista: HSBC Belas Artes, Espaço Unibanco, CineSESC, fazia rodízio porque gostava de todos igualmente. Um dia, quando se dirigia ao HSBC, se sentiu atraída pela exposição fotográfica do Lorca que estava acontecendo na Caixa Cultural, entrou e começou a observar, fascinada.
Emily que saia da livraria Cultura (que também fica no conjunto nacional) viu aquela garota tão incontestávelmente bonita, olhando com tanta paixão aquelas coisas, que não pode ter outra reação se não olhá-la com a mesma paixão que a mesma olhava para as fotografias. Ficou imóvel olhando-a por tanto tempo que Julia percebeu e quando Emily percebeu que Julia havia percebido, saiu correndo, chorando de vergonha.
Então Julia, sem pensar em nada, correu atrás dela, encostou no seu ombro e quando ela olhou, disse, sorrindo: "Olá", Emily enrrubreceu muito e disse, perturbada: "Desculpa!", Julia sorriu um sorriso maior e perguntou: "Por quê?", "Porque eu fiquei te olhando..", "E que mal há nisso? Eu mesma estou te olhando agora mesmo. Me diga uma coisa.. Qual é o seu nome?", "Emily", "Prazer, o meu é Julia", estendeu a mão com graça, Emily apertou-a e depois de Julia insistir um pouco foi com ela para o cinema.
Trocaram celulares e passaram a se encontrar todos os dias na estação Ana Rosa do metrô, no lugar onde ficavam os quadros. Emily chegava sempre um pouco antes, exceto em uma quinta-feira, porque tentou não ir até o último segundo, mas acabou rendendo-se e foi.
As meninas viraram grandes amigas, foram se conhecendo melhor e se encantavam todo dia um pouco mais uma com a outra, se completavam e pareciam se conhecer há anos (ao passo que passaram apenas 25 dias juntas). Se divertiam indo nos lugares mais aleatóriamente escolhidos da cidade. E antes de ir dormir, desde o primeiro dia, se ligavam e desejavam boa noite, o gesto partiu de Julia e depois elas alternavam.
Emily nunca tinha sido mais feliz na vida, Julia sempre foi tudo que ela procurava, tão doce e gentil, tão divertida e espontânea, tão segura e objetiva. O perfume que ela exalava era um balsâmo pras suas dores, ela já não achava a humanidade tão detestável assim e a idéia de poder tocá-la a fez perder o interesse até por seus livros, nada importava além de Julia. Gostava de colocá-la ao sol e observar as nuances do azul dos olhos dela e como seu cabelo brilhava quase branco. Ela queria casar com sua menina, mudar pra cidade e nunca mais sair do abraço dela e da sua voz doce.
Julia se sentia completa, nunca uma amiga a entendera tanto, nunca tinha experimentado uma companhia mais agradável, por mais que socializasse facilmente. É que Emily era diferente de todo mundo que ela conhecia e viria a conhecer, tão inteligente, pensava tão amplamente, além de ser uma das pessoas mais cultas que ela conhecia. Mal podia suportar a idéia que ela voltaria pra Sorocaba, odiou tanto aquela cidade que nos últimos dias que passaram juntas, até chorou, mais que pela saudade que se aproximava, por ódio aquele lugar que roubava sua amiga. Ela queria tê-la pra sempre por perto, queria dividir sua aspiração de apartamento na Chacará Klabin, queria que todos seus amigos (que, na sua maioria, estavam fora da cidade) a conhecessem, queria conhecer o mundo do lado dela e chamá-la pra ser madrinha de seu casamento. Ela adorava abraçar aquela menina pequetica e enchê-la de beijos, era absurdamente carinhosa e Emily, mais do que os outros, sabia receber seu carinho, ela não podia ir embora, não podia..
Mas foi.
Dia 29 de julho ela voltou pra Sorocaba, chorando como um bebê e prometendo que voltaria em breve, convidando-a pra ir passar algum final de semana com ela e morrendo por dentro.
Chegando em Sorocaba Emily ligou, ainda escorriam lágrimas do rosto de Julia, mas cesaram na hora em que ela reconheceu a voz: "Você chegou bem, Pandinha (começou a chamá-la assim por seus cabelos muito pretos e pele muito branca, além de sua aparência fofa)?", "Cheguei péssima, mas viva. Vem passar o final de semana que vem aqui? Eu falei com minha mãe e ela disse que tudo bem, tem espaço e você vai gostar daqui", "Duvido que eu vá gostar do lugar que te faz ficar longe, mas eu vou ver se posso", "Por favor", "Eu quero ir, Panda, mas não depende de mim, né? Vou conversar aqui em casa e amanhã eu te falo", "Tá bom, mas se não deixarem insiste, tá?", "Prometo. Te amo, viu?", "Eu também..".
Emily desligou o telefone com a esperança que ela vinha, não chorava mais, deitou na cama e ficou olhando pro teto por mais de duas horas, lembrando de tudo que tinham passado, sorrindo abobadamente, com a certeza de que era correspondida. Nunca antes ela tinha gostado de uma garota, mas o mesmo podia dizer em relação a garotos, de modo que essa paixão só causou medo quanto a reação de sua família. Mas ela não se preocuparia com isso por hora, agora ela só queria ter certeza de que era correspondida, mas as provas eram irrefutáveis. Vejam, se Julia não tivesse gostado dela não teria corrido atrás da mesma, depois não teria insistido pra que fossem ao cinema, nem muito menos teria ligado logo depois de se verem só pra desejar boa noite, além disso foi ela quem disse "Te amo" primeiro, ela estava sempre mantendo contato físico e, se ela não estava delirando, foi por pouco que na segunda terça-feira que passaram juntas, Julia não a beijou. Ela era correspondida sim, só não sabia como deixar as coisas claras, não sabia e nem tinha coragem, porque a idéia da rejeição era uma dor maior do que qualquer outra e, se ela fosse rejeitada, se mataria, jura que se mataria.
Julia pediu pros seus tios pra passar o final de semana com Emily, mas eles acharam perigoso demais e disseram não. Mas depois que ela parou de comer e ficava chorando o tempo inteiro (justamente pra tentar dobrá-los), eles acabaram aceitando. Fizeram mil recomendações e foram levá-la até lá "Tudo bem você ir, mas ônibus é absurdamente perigoso, a gente te leva", ela nem tentou poupar-lhes o trabalho com medo de que mudassem de idéia. Quinta-feira suas malas estavam prontas e ela ficou tirando e pondo a escova de dentes da mala sempre que precisava usá-la.
Ligou pra Emily que explodiu de alegria, porque já estava explodindo de saudade, já que desde domingo não falava com a garota.
Quando ela chegou, na sexta-feira de noite, as duas ficaram abraçadas por 30 minutos, entre sorrisos e beijos apertados nas buchechas e não dormiram nenhuma das noites conversando e conversando sobre tudo e qualquer coisa que se passava em suas mentes.
Domingo chegou e a perspectiva da ida começou a pesar em Emily, então ela pensou que se declarasse logo o que sentia, seria mais certo que ela voltaria na semana que vem. Se elas firmassem compromisso..
Então ela foi pro banho, ensaiou mil formas de falar, passou cremes e perfumes, se vestiu da maneira mais bonita que encontrou e levou-a na praça que mais gostava, comprou dois sorvetes de menta e quando Julia pegou sua mão, disse: "Ju, se eu tiver enganada você jura que não vai me desprezar?", "O quê? Eu jamais te desprezaria", "Então ok. Juro que se a resposta for não eu nunca mais toco no assunto, ok?", "Você está me assustando, hahaha, fala logo, besta", "Ok. Quer namorar comigo?". Julia apertou a mão dela mais forte, deu um beijo leve nos seus lábios e disse "Eu não posso", ela não falou mais nada, não perguntou o porquê, não quis entender e quando os pais de Julia chegaram para buscá-la, ela não foi se despedir, se trancou no quarto desde que voltaram da praça. Não derramou uma lágrima e nem gritou, desligou seu celular pra sempre e nunca mais visitou sua avó.
Hoje Emily está casada com Kevin, tem uma filha, que se chama Karina. Não trabalha e gasta todo seu tempo cuidando da casa e de Karina, não lê mais ou pensa sobre coisa alguma além de novelas e que viagem ela e sua família feliz farão no final do ano.
Julia divide um apartamento com Karina (dos cabelos acajú e olhos de esmeralda) na Chacará Klabin, é fotógrafa e gosta de meninas.
6 comentários:
Eu conheço duas pessoas assim.
E com essas características físicas.
Mas acredito que um dia elas estarão juntas, gosto de acreditar nisso.
Bela história.
Obrigada, anônimo. (:
Por nada, querida Ferdi.
Você imaginou tudo isso ou aconteceu?
Hmm.. prefiro deixar o mistério. hê
Acho válido.
Mistérios sempre atraem.
(in)felizmente, rs
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